quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

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"Teria os meus 10 anos, quando pela primeira vez a* ouvi recitar a um bom padre, que me ensinava rudimentos de gramática latina. Não ouso dizer que tivesse entendido. E, entretanto, profunda foi a impressão que recebi, como a revelação dum mundo novo e superior, a revelação do ideal religioso. Escapava-me o sentido de muitos conceitos, a significação de muitas palavras: mas, pelo tom geral da sublimidade, pela tensão constante de um sentimento grande e simples, aqueles versos revolviam-me, raziam-me as lágrimas aos olhos, como se me introduzissem, embalado numa onda de poderosa harmonia, na região das cousas transcendentes. Daí por diante, interrompia muitas vezes a repetição dos casos gramaticais, para pedir ao meu paciente mentor uma nova recitação daqueles versos. A minha nascente intuição do ideal religioso achava uma expressão reveladora na poesia grave e penetrante daquele hino sacro. Por muito que depois aprendesse sobre as cousas transcendentes, aquela impressão ficou e considero-a boa. "


* poema "Deus" de Alexandre Herculano

Antero de Quental
Tesouro Poético da Infância
Porto, 1883

in "A estrada fascinante" de Matilde Rosa Araújo

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