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Sabia que a sua bagagem de médico constava, equitativamente, de destreza manual e de receitas empíricas, somadas a descobertas igualmente experimentais que, por seu turno, levavam a conclusões teóricas sempre provisórias: uma onça de observação raciocinada valia, neste campo, mais que uma tonelada de sonhos.
Todavia, ao fim de tantos anos a anatomizar a máquina humana, amaldiçoava-se por nunca se ter aventurado com mais audácia na exploração desse reino do qual nos julgamos senhores e em que vivemos prisioneiros. Em Eyoub, o dervixe Darazi, com quem travara amizade, havia-lhe transmitido métodos seus, aprendidos na Pérsia, num convento herético, visto que, tal como Cristo, também Maomet tem os seus dissidentes. (...) Reiniciava agora experiências outrora encetadas nas traseiras de um pátio onde gorgolejava uma nascente.
Levavam-no elas mais longe do que nenhuma das experimentações ditas in anima vili.
Deitado de costas, retraindo os músculos do ventre, dilatando a caixa do tórax, aonde num vaivém, se move esse animal assustadiço a que chamamos coração, enchia cuidadosamente os pulmões, com a consciência de quem se reduz a um saco de ar posto em equilíbrio com as forças celestes.
Aconselhara-o Darazi a respirar assim até às raízes do ser. Fizera também com o dervixe a experiência contrária, a dos primeiros efeitos de um compassado estrangulamento. Erguia os braços, espantando-se com o facto de a ordem ser dada e recebida, sem nunca saber ao certo que senhor mais forte do que ele subscrevia essa ordem; já, com efeito, milhares de vezes, constatara que a vontade meramente pensada não era capaz de o fazer pestanejar ou franzir as sobrancelhas, da mesma forma que as objurgações de uma criança não conseguem fazer mover as pedras. Precisava, então, do consentimento tácito de uma parte de si, mais próxima do abismo do corpo.
Meticulosamente, como quem separa as fibras de um caule, distinguia ele, umas das outras, essas várias formas de vontade."
in "A obra ao negro", orig. "L'Oeuvre au Noir"
Marguerite Yourcenar
Tradução de António Ramos Rosa (!),
Luísa Neto Jorge e Manuel João Gomes
9ª edição Dom Quixote, 2009
Éditions Gallimard 1968
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