.
"Tinham-se esquecido dele. Afinal era um homem que comia e dormia, como toda a gente, e que ganhava a vida, como toda a gente que não tinha castelo ou comércio.(...) Pousou o braço no peitoril da fresta e olhou com aborrecimento a ferida seca. Como começara tudo aquilo? Porque havia de ganhar a vida assim pelo mundo fora, dando o seu sangue, o seu precioso sangue rubro, espesso e ao mesmo tempo líquido, a homens e mulheres que sofriam nem sabia do quê? Quantas vezes já isto acontecera? Muitas. Desde que ficara só e partira, muitas. Homens velhos e novos, mulheres casadas, solteiras e viúvas, crianças e adolescentes. (...) E, de súbito, perguntou-se: que seria deles: viveriam longamente, como viveriam? Porque ele partira pouco tempo depois, (...)"
"Balanceando o erecto corpo ao passo do cavalo, vinha descendo a encosta. O sol, muito alto ainda, iluminava de crepitações o vale que, selvático, se abria ante o seu olhar que pervagava abstracto, sem distinguir o mato que floria, as pedras que rebrilhavam pardas e cinzentas, os pequenos animais que esvoaçavam, corriam, rastejavam, ou se ficavam suspensos, sem temor, fitando a mole imensa e caminhante de cavalo e cavaleiro. No fundo do vale, por entre os renques de choupos e salgueiros, entrecortada estava a chapa metálica e estreita de um rio. Foram para ele descendo, o cavaleiro, na mesma direcção absorta, sofreando o passo, que se apressava agora, do sedento cavalo, cujas narinas se dilatavam.
(...)
"
Jorge de Sena, in "O físico prodigioso"
Sem comentários:
Enviar um comentário